terça-feira, 11 de agosto de 2009

ESTUDO DE CASO: O crime da cavalaria e a insegurança pública

Cerca de 200 assassinatos foram cometidos no Carnaval de 1999, alguns deles em chacinas (assassinatos em grupos). Não estivesse a opinião pública tão acostumada com a violência e as chacinas, teria ficado muito mais chocada do que ficou com uma delas, ocorrida na cidade de São Vicente, no litoral de Sã Paulo. Somente por insistência de parentes das vítimas as autoridades movimentaram-se, para comprovar que o assassinato de três adolescentes era oba de policiais militares, que os haviam detido na saída de um baile, para matá-los a sangue frio algumas horas depois, sob o comando de um oficial.
Esse episódio somou-se a outros na história de uma organização supostamente dedicada a proteger o cidadão. Criada nos anos 70, a polícia militar funcionou como tropa de assalto durante a ditadura militar, sendo autorizada para reprimir passeatas e invadir escolas e sindicatos. Seus integrantes, naquela época, eram doutrinados para acreditar que estudantes e operários eram “o inimigo”.
Até os anos 70, existiam diversas organizações policiais fardadas nos Estados do Brasil. O sistema jamais funcionou satisfatoriamente. Em diversas ocasiões, foram feitas propostas para unificar as diferentes corporações, que nunca prosperaram. Além disso, a existência das milícias estaduais, como a Força Pública em São Paulo, era motivo de preocupações para as autoridades federais, especialmente para o Exército, que sempre temeu sua utilização como instrumento de independência dos Estados.
A situação permaneceu assim até os anos 70. Nessa época, a ditadura militar, iniciada em 1964, fundiu todas as organizações policiais fardadas e transformou-as nas policias militares, abrangendo os bombeiros. As PMs estaduais foram subordinadas ao Exército, que criou um órgão para seu controle. Ficaram as PMs responsáveis pelo policiamento ostensivo fardado e foram virtualmente separadas das secretarias de Segurança Pública, que passaram a administrar a chamada polícia civil, responsável pelo policiamento judiciário.
As duas organizações, durante todo o período da ditadura, funcionaram como órgão de repressão. Os militares (Exército, principalmente) controlavam as secretarias estaduais de segurança. Isso assegurava certa unidade de comando das duas corporações, que se perdeu completamente, quando o país foi redemocratizado, em meados dos anos 80. Quando uma nova Constituição foi promulgada, no final dessa década, o lobby dos militares conseguiu preservar a independência das PMs.A criação das policias militares e sua separação das autoridades civis tornou mais agudo o problema que havia antes dos anos 70. O que funcionava de forma relativamente mais bem integrada, quando havia diversas corporações fardadas, transformou-se em um conjunto sem unidade. Polícia militar e polícia civil tornaram-se organizações concorrentes, praticamente sem nenhuma interação. Diversos fatores contribuíram para que, no limiar do século XXI, a criminalidade se tornasse uma das grandes preocupações da sociedade brasileira, agravada pela ineficiência das duas corporações.

A cada dia, ocorrem 23 assassinatos, 330 furtos e roubos de carros e cerca de 1500 roubos de outros tipos somente na Grande São Paulo. O mais perturbador da violência no Brasil é o fato de contrariar a tendência de declínio de longo prazo em outras sociedades civilizadas.
A polícia, em vez de solução, tornou-se parte do problema. E a violência policial, apenas um grande problema dentro de uma coleção de grandes problemas. Um estudo publicado em 1999 sobre a polícia apresentou um panorama de seriíssimas distorções:
• A PM de São Paulo, com 83 mil integrantes, transformou-se em uma usina de desperdícios. Contra 1400 sargentos na ativa, mantém 14.000 reformados. Para 35 coronéis na ativa, sustenta mais de 1.000, precocemente aposentados, que recebem pensões de 11.00 reais. A banda da PM tem 620 músicos. Suas tropas de choque imobilizam 3.595 homens e 300 veículos, o triplo do necessário, e 10 vezes mais do que o efetivo das forças equivalentes da polícia de Nova Iorque. Milhares de homens e mulheres fardados não trabalham em qualquer atividade de segurança pública, mas como cozinheiros, garçons, motoristas, guarda de honra, sentinelas de quartéis, enfermeiros, mecânicos etc. Mais de 200 homens fardados trabalham como barbeiros.
• A atividade fim, o policiamento, não é valorizada. As unidades operacionais que prestam serviços à população são consideradas local de castigo para os expulsos das castas superiores, os ociosos que ficam no quartel-general. Estes são promovidos muito mais por apadrinhamento, apoio político ou algum talento diferenciado. Um oficial tem duas vezes mais probabilidade de ser promovido no quartel-general, mesmo em atividades sem importância, como relações públicas, do que arriscando a vida em uma unidade operacional.
• Jovens recém-saídos da academia militar, onde não tiveram que se preocupar com alimentação, vestuário e outras despesas semelhantes, sem experiência profissional, são transformados em oficiais que podem chegar aos postos mais elevados sem nunca prestar qualquer serviço à população. Ao começar a carreira, tentam compensar sua incompetência com o uso da disciplina militar rigorosa, em relação a soldados mal remunerados, que estão há mais tempo na rua, enfrentando a criminalidade.
• A incompetência dos oficiais e a excessiva valorização dos princípios militares produz distorções gravíssimas. Para um policial militar, é mais fácil ser punido por chegar atrasado do que por assassinar ou torturar. No regulamento disciplinar da PM “ o uso desnecessário de violência no momento da prisão” é ofensa menor do que “criticar as ações dos superiores e as autoridades em geral.”
• A violência policial tem raízes históricas. Criada em 1831, as primeiras forças policiais tiveram como uma de suas principais tarefas a recaptura de escravos fugidos. A polícia recebia pagamento para açoitar escravos, por encomenda dos proprietários. Essa foi uma época em que o medo das “classes perigosas” assolava a Europa e contaminou o Brasil, quando a família real portuguesa aqui se refugiou. “Classes perigosas” formavam a “população hostil e perigosa” do Rio de Janeiro da época, com seu “espaço público dominado pelos africanos em servidão”. Falavam do ilustre povo brasileiro.
Em 1997, todo o Brasil viu na televisão um destacamento da PM cometendo atrocidades na Favela Naval, em Diadema, São Paulo. Poucos meses depois, as polícias militares em sete Estados do Brasil entraram em greve, por questões salariais. Esses episódios reforçaram as propostas de extinção da PM, ou de fusão das duas polícias. Mudanças na legislação foram feitas, de modo que os crimes cometidos pela PM, contra civis, fossem julgados em tribunais civis. No entanto, as propostas de desmilitarização da segurança pública não prosperaram. No final de 1998, o relatório da Ouvidoria da Segurança Pública de São Paulo revelou a dimensão da violência policial. Abuso de autoridade era a principal reclamação da população. Outros relatórios mostravam o descompasso entre as denúncias contra policiais e as punições a eles aplicadas. Soldados são punidos com muito mais freqüência do que coronéis. O dado mais alarmante, no entanto, não estava nos relatórios. Muitos soldados da PM haviam morrido – mais por suicídio do que mortos em ação. As explicações estavam nos baixos salários, nas condições precárias de trabalho e no mau tratamento recebido dos oficiais. Nenhuma providência foi tomada a respeito desse fato.Nos meses que se seguiram ao massacre de São Vicente, a criminalidade continuou em seu ritmo norma, dentro e fora da polícia. Todas as propostas para unificar as duas corporações e para torná-las mais eficientes continuaram esbarrando nos impedimentos constitucionais e em obstáculos como a falta de poder da Secretaria da Segurança e a falta de vontade dos políticos de resolver a situação e a inércia das duas corporações.
No início de 2002, todos os autores do massacre de São Vicente foram condenados à prisão e expulsos da PM.




Questões para reflexão

1 - Use o enfoque sistêmico para explicar as principais variáveis que produzem a violência na sociedade brasileira.

2 – Use o enfoque sistêmico para explicar a violência da polícia em relação à população.

3 – Em sua opinião, quais são as desvantagens de haver duas corporações, na mesma base geográfica, responsáveis pela segurança pública? Há alguma vantagem?

4 – Há alguma vantagem na existência de uma corporação que cuida da segurança pública? Quais as desvantagens?

5 – Você acha que seria possível haver, no Brasil, polícias municipais como há nos Estados Unidos, com chefes eleitos pela população? O que você pensa do argumento de que “o povo brasileiro não está preparado para isso”?

6 – Em sua opinião, é viável um sistema de segurança único, para um país tão diversificado como o Brasil, ou seria melhor que cada Estado pudesse organizar seu próprio sistema? Nesse caso, como se faria a integração de todos os sistemas?

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